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07/mar/2019
Cordeiro
A indevida interferência do poder judiciário nas concessões de reajustes tarifários em serviços de transporte público coletivo.

Os tempos mudaram para os serviços de transporte público coletivo de passageiros. Os serviços se sofisticaram, as relações contratuais com o Administração Pública ficaram mais hígidas, o arcabouço legislativo se transformou – trazendo muito mais regulação ao setor –, as formas de cálculo dos reajustes tarifários evoluíram. Mas toda essa mudança parece não ter sido ainda percebida pelo Poder Judiciário.

Atualmente,  – e infelizmente, diga-se –, os procedimentos de viabilização dos reajustes tarifários praticados pelo Poder Concedente sempre envolvem uma análise sobre a interferência do Poder Judiciário naquela medida de reajuste. O risco da concessão de uma liminar suspendendo o ato de reajustar a tarifa é tão iminente que justifica a colocação de cenários nos procedimentos de reajuste sobre como sanar os efeitos deletérios da concessão de uma medida de urgência suspendendo eventual reajuste tarifário. E a conclusão é, em regra, a de que haverá a necessidade de aporte de recursos públicos através de indenizações ao concessionário ou a aplicação imediata de subsídios orçamentários.

Nos últimos anos, esse fenômeno da suspensão liminar do reajuste tarifário concedido ocorreu em grandes Estados  e Municípios, tais como o Estado de São Paulo em 2017, nos serviços de transporte coletivo da Região Metropolitana sobre trilhos e pneus; no Município de São Paulo em 2018; nos Municípios de Guarulhos/SP e Cotia/SP em 2017; no Município de João Pessoa/PB em 2017; no Município de Belo Horizonte em 2017 e em tantos outros Estados e Municípios em todo o País nos anos de 2017 e 2018.

Como dito, não é um fenômeno novo. A questão da interferência do Judiciário nos atos de concessão de reajustes tarifários é algo que remonta a décadas. Entretanto, os argumentos jurídicos para tentativa de reforma dessas decisões desde aquela época têm, em muitos casos, sido o mesmo. Basicamente, estamos diante da violação à separação dos poderes, ao sistema denominado “freios e contrapesos” (separação das funções estatais).

Sob essa tese legítima, diga-se de passagem, tenta-se demonstrar ao Poder Judiciário que aquela decisão judicial não poderia interferir num ato administrativo praticado pelo Poder Executivo. Entretanto, a discussão dessa questão eminentemente jurídica poucas vezes tem tido eficácia como fundamento para que o Poder Judiciário recue do seu afã de interferir diretamente nos atos do Poder Executivo que determinam o reajuste das tarifas públicas.

 As decisões judiciais, em regra, direta ou indiretamente questionam os critérios pelos quais a tarifa foi concedida, muitas vezes se limitando a dizer que pelo simples fato de que tenham sido concedidas acima da inflação acumulada seria o suficiente para que fossem suspensas e discutidas por período indeterminado (diz-se indeterminado, pois são incalculáveis os prazos em que se findam processos judiciais dessa natureza).

Por esse motivo, já que a discussão judicial do tema é inevitável (não se pode impedir que qualquer cidadão recorra ao Poder Judiciário), e já que o Poder Judiciário reconhece a tese abstrata da violação à Separação dos Poderes sem qualquer critério e em violação à segurança jurídica dos contratos (ainda que isso seja inconstitucional, repita-se), mais do lutar contra essa força, é necessário que haja uma adaptação a ela, de tal forma a tornar mais controlável esse risco de suspensão dos reajustes tarifários contratualmente previstos.

Se as decisões judiciais se concentram nos fatos (reajuste acima da inflação, por exemplo), e não numa potencial violação a direito concreto, é importante que as defesas judiciais se concentrem em demonstrar ao Poder Judiciário a higidez com as quais a relação entre o Poder Concedente e a Concessionária são construídas.

Como dito no início desse artigo, a situação jurídica dos contratos evoluiu muito de duas décadas para hoje e, infelizmente, o Poder Judiciário ainda analisa os fatos diante da percepção das relações precárias de outrora.

Daí a necessidade de que as defesas judiciais também evoluam, de tal forma a demonstrar ao Poder Judiciário que essa relação se alterou.

Atualmente existem duas legislações relevantes para o setor que, somadas aos contratos de parceria (concessão) firmados, permitem demonstrar ao Poder judiciário que, na tentativa de defender os interesses da população e dos usuários ao conceder liminares de suspensão de reajustes tarifários, em verdade e em última análise, essas decisões prejudicam – e muito – esse interesse social.

Para se comprovar essa alegação, é importante que os responsáveis jurídicos pelas defesas e recursos estejam acompanhados pelos técnicos responsáveis pelo cotidiano da operação e, principalmente, pelos economistas que entendam o processo econômico de cálculo desse reajuste tarifário.

A partir desse suporte técnico, a defesa jurídica deve fazer menção expressa aos termos da Lei Federal nº 8.987/1995 (Lei das Concessões), particularmente nos dispositivos que tratam da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico dos contratos, mas especialmente e principalmente fazer menção à Lei Setorial que rege as relações dos serviços públicos de transporte coletivo, que é a Lei Federal nº 12.587/2012 (Lei da Mobilidade Urbana).

Especialmente no que tange a essa lei, é importante uma abordagem especial sobre o funcionamento da cobrança de tarifas, particularmente a diferença conceitual entre tarifa de remuneração e tarifa pública.

A tarifa de remuneração, nos termos da Lei da Mobilidade Urbana, é donde se extrai o que se denomina de preço contratual. Ou seja, é a denominação que se dá para definir o quanto de remuneração o contratado fará jus ao longo da execução de seu contrato de contrato de concessão, para que possa cumprir todas as obrigações assumidas no empreendimento, mais a sua remuneração (nesse caso seus dividendos, seus resultados)[1].

Por outro lado, a Lei de Mobilidade Urbana traz a hipótese de que o valor monetário a ser cobrado do usuário seja igual ou diferente do valor monetário calculado para a Tarifa de Remuneração, e para essa tarifa cobrada do usuário a lei chama de Tarifa Pública.

O entendimento do Poder Judiciário sobre essa diferença é fundamental para que na sequência possa se abordar o conteúdo que compõe o cálculo da Tarifa de Remuneração.

E o cálculo da Tarifa de Remuneração é constituído, nos termos da Lei da Mobilidade Urbana, pelo preço público cobrado do usuário pelos serviços (tarifa pública) somado à receita oriunda de outras fontes de custeio, de forma a cobrir os reais custos do serviço prestado ao usuário por operador público ou privado, além da remuneração do prestador.

Para a elaboração desse cálculo e, posteriormente, para a concessão dos reajustes tarifários, os técnicos envolvidos devem seguir um rigoroso procedimento contratual.

Daí que qualquer interferência do Poder Judiciário nos reajustes tarifários leva a duas consequências drásticas possíveis: a) o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos e a perda imediata da capacidade de investimento da concessionária ou, em casos extremos, da capacidade de custeio da sua operação, na hipótese em que o Poder Público não estabeleça o subsídio orçamentário imediato; ou então, b) na hipótese de que se estabeleça o subsídio orçamentário, há uma interferência imediata na capacidade de investimento ou mesmo de custeio das contas públicas do Município/Estado envolvido.

Há, ainda, um reflexo prejudicial do orçamento público, na medida em que o Poder Concedente deverá se valer de créditos orçamentários suplementares, já que naturalmente esses valores não teriam sido previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA).

Daí se concluir que a concessão de uma suspensão liminar judicial sobre reajustes tarifários prejudica muito mais a população como um todo do que a sua não suspensão.

Ainda que, hipoteticamente, o processo judicial (sem a concessão da liminar) venha a constatar posteriormente que houve de fato um excesso na concessão do reajuste pelo Poder Público, esse excesso tem tratamento legal pela Lei de Mobilidade, que o denomina de superávit tarifário e, nesse caso, a lei estabelece que esse valor monetário a maior deve ser revertido em investimentos para a Mobilidade Urbana daquele Município/Estado, como a construção de terminais e pontos de parada, ou mesmo refletir num percentual menor de reajuste tarifário no próximo ano.

Fato é, por esses motivos, a concessão da suspensão liminar do reajuste tarifário nunca é o melhor caminho.

E, na hipótese de que ocorra, mais do que o Poder Concedente e as concessionárias se limitarem ao argumento jurídico da separação dos poderes, é importante que todos os envolvidos na elaboração da defesa estejam atentos a demonstrar ao Poder Judiciário que as relações se sofisticaram e que é importante que o Poder Judiciário tenha ciência disso.

As ferramentas estão às nossas mãos, precisamos utilizá-las com maestria, sempre em prol da manutenção da prestação dos bons serviços aos usuários e isso só se dá com contratos economicamente estáveis.

Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV.


[1] Esclareça-se que antes da vigência da Lei da Mobilidade Urbana a Tarifa de Remuneração era tratada no setor comumente como “Tarifa Técnica”.