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03/out/2019
Cordeiro
As hipóteses de transferência da concessão

Claro que a alteração do corpo da administração pública não deveria, em tese, alterar a lógica do cumprimento do contrato – de parte a parte. Mas sabemos, no entanto, que essa não é a realidade no Brasil, e os contratos públicos acabam por sujeitar-se, sim, às vontades e interpretações do administrador de plantão.

Os contratos de concessão, em quaisquer de suas modalidades, são contratos de longo prazo, sujeitos, portanto, às intempéries da economia e aos riscos jurídico-políticos que infelizmente ainda permeiam as relações público-privadas no Brasil. Basta compreender-se que numa concessão de dez anos – curta, portanto –, o concessionário se relacionará com, no mínimo, três administrações distintas, considerando-se o ciclo eleitoral atualmente vigente no Brasil, de quatro anos.

Além disso, no horizonte da mobilidade, vários são os elementos que alteram os riscos do contrato e podem influenciar significativamente no (i) interesse do parceiro privado na continuidade da operação; e (ii) sua própria capacidade de cumprir o contrato público nos termos originalmente contratados.

Como estamos tratando de serviço essencial – e que, por isso mesmo, não admite solução de continuidade –, as situações que possam trazer risco à continuidade do serviço e à própria manutenção da relação contratual devem ser sempre evitadas e mitigadas da forma mais eficiente possível.

É por essas (e outras) razões que temos advogado, há tempos, em favor da modernização dos contratos de transporte. Aumento da segurança jurídica e a adequação do escopo para garantir o adequado equilíbrio econômico-financeiro do contrato são algumas das vantagens vislumbradas nesse processo de modernização. Há outras, mas que não vem ao caso, nesse artigo, tratar.

Até porque, sempre que tal expediente se torne inviável – dado que carece de verdadeira (e legítima) negociação entre as partes contratantes –, é de interesse do poder concedente evitar a descontinuação do contrato, que demanda procedimentos jurídicos complexos e politicamente desgastantes, e também do concessionário, dado que o contrato público é um ativo e, como tal, possui valor.

Eis que surge como solução à manutenção da relação contratual a transferência da concessão a um terceiro (a quem a lei chama de pretendente). Ou seja, o concessionário pode ceder a um terceiro sua posição contratual, transferindo àquele terceiro a condição de concessionário nos exatos termos do contrato de concessão.

Essa solução não é nova e está expressamente prevista no art. 27 da Lei nº 8.987/95 (“Lei Geral de Concessões”), que regula, essencialmente, as condições em que tal transferência se processará. A regra ali posta é clara: o pretendente deve preencher todos os requisitos de habilitação (jurídica, técnica, econômico-financeira e fiscal), bem como deve comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor para que a anuência prévia do poder concedente seja outorgada.

Assim, já é possível dizer que as únicas exigências legais para que o poder concedente conceda a anuência prévia ao pretendente para assunção da posição de concessionário são aquelas ali apontadas: habilitação e compromisso de cumprimento do contrato.

Mas, claro, a Lei Geral de Concessões, na nossa visão, é uma lei nacional (e de eficácia plena, é bom dizer) e, portanto, não exige regulação em nível estadual e municipal. Nada impede, claro, que leis de outras entidades federativas possam também regular o assunto, mas jamais, a nosso sentir, podem vedar ou criar outras exigências para que se processe a transferência da concessão.

E, se assim é, cabe às legislações locais apenas e tão-somente regulamentar o exercício desse direito – de transferir a concessão –, mas nunca proibir seu exercício ou mitigá-lo com exigências não previstas na legislação nacional.

Mais ainda: sob essa ótica, a concessão da anuência prévia pelo poder concedente é ato vinculado, não admitindo, assim, exercício de discricionariedade por parte da administração pública. É dizer: se cedente e pretendente apresentam um requerimento, e se a pretendente preenche os requisitos de habilitação exigidos no edital de licitação, bem como se compromete a cumprir todas as cláusulas do contrato de concessão, não há espaço para julgamento discricionário por parte do administrador público.

E por que? Ora, a resposta é bastante simples: ao poder concedente interessa que o concessionário detenha a capacidade para operar o serviço e cumpra o contrato. Ao concessionário é atribuído o direito legal de ceder sua posição contratual a quem apresente essa capacidade e se comprometa a cumprir o contrato. Logo, inexiste prejuízo ao poder concedente na transferência da concessão. Inexistindo prejuízo, não há que se falar em conveniência e oportunidade de se processar tal transferência.

Apesar de a disposição legal ser objetiva – a exigência é apenas pela anuência prévia do poder concedente –, ainda resistem entendimentos em contrário que, sem suporte legal ou constitucional, acabam por inviabilizar transferências de titularidade da concessão legitimamente requeridas.

Primeiro, há uma série de confusões conceituais em relação ao instituto da transferência da concessão. O primeiro deles está ligado ao fato de que a transferência pode se processar entre empresas do mesmo grupo ou a terceiros completamente desvinculados do atual operador. Afinal, onde o legislador não proibiu, não é dado à administração pública proibir. Se entendermos que a transferência da concessão é um direito legítimo do concessionário, ao poder concedente é dado apenas fazer a análise objetiva das condições legalmente exigidas para que sua anuência prévia seja concedida. Nada mais. E, claro, desnudar-se a que título aquela cessão se deu (seja por cessão gratuita ou onerosa, entre empresas do mesmo grupo ou não) não é tarefa atribuída ao poder concedente, dado que as razões pelas quais a concessão é transferida concentram-se exclusivamente no âmbito privado.

Outra confusão bastante comum diz respeito à transferência de participação em consórcio, quando o consórcio é o concessionário. Nesses casos, não é incomum a simples proibição de transferência, quando, na realidade, o procedimento sequer se enquadra no conceito de transferência da concessão. É que, apesar de o consórcio não ser dotado de personalidade jurídica, ele é dotado de personalidade contratual e, portanto, titulariza a concessão. Logo, se um operador componente do consórcio transfere sua participação a outra pessoa jurídica (seja membro do consórcio ou não), ao poder concedente apenas cabe averiguar se o consórcio mantém as condições de habilitação exigidas no edital, porquanto sequer haverá alteração da titularidade do concessionário.

Por fim, há que se lembrar que, por força do disposto no art. 40, parágrafo único, da Lei Geral de Concessões, a regra da transferência também se aplica às permissões. As permissões, normalmente, não possuem o mesmo rigor contratual que as concessões, muitas vezes sequer tratando de hipótese de transferência. Mas, claro, essa circunstância não pode se tornar um impeditivo para que o permissionário também realize a transferência da permissão, dado que a lei estabelece todos os requisitos necessários para o exercício desse direito.

A transferência da concessão (ou da permissão, conforme o caso) deve ser encarada, na realidade, como um mecanismo de solução privada para um problema com contornos absolutamente públicos. É saudável, do ponto de vista contratual, que o concessionário possa se reestruturar ou mesmo ceder o ativo para terceiros, permitindo que o serviço em si – que é o que realmente importa do ponto de vista do poder concedente – mantenha-se sendo prestado de acordo com as exigências contratualmente estabelecidas.