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LEONARDO CORDEIRO
IVAN LIMA
Tempos modernos exigem estruturas jurídicas avançadas. Isso é um fato. A mobilidade urbana tem sido pautada por análises essencialmente futurísticas, baseadas nos modelos disruptivos (para usar o termo da moda) que vão desde a condução autônoma dos veículos até a predominância dos serviços de transporte sob demanda.
Toda essa visão do futuro não pode, todavia, descolar-se da realidade da estrutura jurídico-regulatória que rege a mobilidade urbana no Brasil. Afinal, o transporte coletivo de passageiros – principal meio de deslocamento de pessoas no mundo – é um serviço público, assim definido em nossa Constituição e legislação de regência.
Mais do que isso: até por uma questão de eficiência, a prestação dos serviços públicos de transporte de passageiros é quase na sua totalidade delegada ao parceiro privado, que opera os serviços de transporte a partir de regras contratuais impostas pelo Poder Público nos instrumentos de convocação de processos licitatórios.
Muitos desses contratos foram idealizados há ao menos uma década e devem ter seu curso concluído somente daqui a vários anos, sendo inegável que a ínfima minoria tenha se provado suficientemente moderna para, de um lado, garantir a entrega de um serviço de qualidade aos usuários, e de outro o retorno adequado do investimento do parceiro privado.
Esse fenômeno se explica, ao menos em parte, pela inexistência de mecanismos contratuais que permitam sua adequada modernização, por meio da apropriação contratual de novas situações, tecnologias e até mesmo modais, como forma de permitir a adequação do serviço de transporte à realidade atual.
Por essa razão é que é necessária uma nova visão de futuro sob o ponto de vista jurídico. Acreditar que as leis andarão pari passu com a evolução dos comportamentos e tecnologias significa simplesmente afrontar a realidade da produção legislativa: a lei, por excelência, sempre corre atrás, nunca na frente.
Por isso, iniciativas como a do Governo Federal, com a edição da Lei nº 13.448/2017, em que se permitiu, no âmbito federal e a determinadas concessões, a prorrogação de contratos e sua modernização em determinadas circunstâncias e condições, são mais do que bem-vindas.
Afinal, no setor de transporte de passageiros, concessões muitas vezes recentes já apresentam consideráveis desequilíbrios econômico-financeiros que, se não estancados rápida e definitivamente, podem gerar a paralisação dos serviços e a quebra da concessionária. Por outro lado, após anos de farra fiscal, União, Estados e Municípios estão em situação financeira delicada, com reduzida capacidade de reequilibrar o contrato por meio de injeção de recursos oriundos do orçamento.
Como resolver, então, essa equação?
Como não existe solução fácil para problema difícil, é preciso analisar cada situação individual, evidentemente, para se ter uma resposta adequada. Mas a primeira solução é invariavelmente igual: contar com uma legislação que dê um grau maior de liberdade para que as partes – Poder Público e parceiro privado – possam negociar uma modernização do contrato, que pode (ou não, a depender do caso) resultar em prorrogação contratual.
Por modernização contratual entendemos a inclusão, modificação ou exclusão de cláusulas contratuais mais consentâneas com a realidade da operação, permitindo mais liberdade operacional e reduzindo espaço para anacronismos tecnológicos ou exigências esdrúxulas. Alterações que permitam ao concessionário explorar mais adequadamente receitas acessórias, autorizem a redução de custos operacionais (como a retirada do posto de cobrador), deleguem ao concessionário, sob determinadas condições, o redesenho das linhas, trajetos e horários são algumas das medidas que, se implementadas, podem resultar num significativo reequilíbrio do contrato, sem a necessidade de injeção de capital público na concessão.
Mas, mais do que isso: a solução também pode passar pela expansão do objeto da concessão, por meio de inserção de novas atividades ou serviços que estejam diretamente relacionados com o objeto, transformando o contrato de transporte num efetivo contrato de mobilidade urbana.
Por exemplo, é comum que um novo projeto de mobilidade desenvolvido para um determinado Município gere substancial impacto na concessão de transporte público. A implantação de corredores exclusivos ou sistemas de BRT é um caso típico. Nessas situações, naturalmente avaliada a viabilidade econômica, o concessionário pode ser convidado a realizar novos investimentos não previstos em seu contrato, para realização das obras de infraestrutura do sistema de BRT, que será então abrangido pela sua concessão, com a absorção da taxa interna de retorno do projeto na concessão em curso. Com a necessidade de realização de investimentos não previstos, é altamente provável que o prazo residual do contrato não permita sua amortização, o que conduzirá naturalmente à sua extensão, de forma a viabilizar o projeto. Assim, resolvem-se dois problemas com uma única solução (ou, no popular, “matam-se dois coelhos com uma cajadada”), dado que a concessão volta a equilibrar-se e o Poder Público otimiza tempo e investimento, deixando de submeter o projeto ao moroso e burocrático trâmite licitatório.
A expansão do objeto concedido deve, ainda, permitir ao concessionário potencializar a monetização da concessão por meio da livre criação de novos mecanismos de geração de receitas acessórias. Nesse caso, o contrato deve ser claro: o céu é o limite (e a lei, claro). Nada de regras de coparticipação na receita acessória. Nada de criar listas taxativas de linhas de receitas (como o limitado busdoor). É preciso despertar no concessionário o real interesse em ampliar o retorno de seu investimento, por meio do estímulo à sua criatividade. A contrapartida é clara: o crescimento da receita acessória deverá ser adequadamente absorvido no fluxo de caixa da concessão, reduzindo a necessidade de contraprestações públicas ou permitindo um menor impacto do aumento dos custos no reajuste tarifário. Promove-se, assim, a modicidade tarifária perseguida pela Lei de Mobilidade Urbana.
Claro que a modernização não passa apenas pelo redesenho dos contratos atuais para absorção de mecanismos mais modernos de regulação da relação público-privada. É preciso, antes de tudo, garantir a segurança jurídica do contrato, coisa raríssima nas atuais contratações.
Segurança jurídica não tem a ver com vontade política, compromisso verbal ou ideologia. Tem a ver com regras de fácil executoriedade. E isso depende de dois parâmetros, essencialmente: a existência de garantias efetivas no contrato, por parte do Poder Público e em favor do concessionário, e a previsão de um aplicador da lei isento e com reconhecida capacidade técnica.
No primeiro caso (garantias), é preciso revisitar o conceito de relação público-privada e entender que os privilégios do Poder Público como contratante devem ser limitados, não lhe sendo permitida a reiterada violação contratual sem consequências jurídicas. Por isso, as garantias contratuais devem ser efetivas e cuidadosamente reguladas.
Já para o segundo parâmetro (aplicador da lei), não vislumbramos hipótese mais eficiente do que o instituto da arbitragem, onde a divergência entre as partes se resolve em ambiente despolitizado, técnico e consideravelmente menos sujeito às influências sociais.
Nesse cenário, a solução ágil de um conflito, com a consequente execução rápida da garantia contratual, gera dois efeitos benéficos a qualquer concessão: o desestímulo ao descumprimento contratual por parte do Poder Público e a ampliação do interesse de investidores para o projeto, aumentando a capacidade de obtenção de financiamento pelo concessionário. O crédito barateia, os investimentos saem do papel e o retorno se torna cada vez mais atrativo. Eis os benefícios palpáveis da percepção de segurança jurídica.
Tudo isso vem se tornando uma realidade concreta no Brasil. Os pleitos de reequilíbrio de contratos públicos cada vez mais saem da esfera judicial – ambiente inóspito para investidores – e resolvem-se no âmbito de uma legítima renegociação dos termos contratuais da relação público-privada. E é a absorção dessa mentalidade pelo legislador e pelo administrador público, como no exemplo da Lei nº 13.448/2017, já citada acima, que renovará o ânimo dos concessionários de serviço público em investir e contribuir para o crescimento do Brasil.
Leonardo Cordeiro é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-professor de planejamento tributário e possui LL.M em Direito Societário pelo Insper.
Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV.