- Direito Público Consultivo
No dia 17 de maio de 2023, o Tribunal de Contas da União (“TCU”) proferiu decisão que tangencia as discussões relativas à autonomia decisória das agências reguladoras. Sob a relatoria do Ministro Antônio Anastasia, o Acórdão nº 971/2023 do TCU visou estabelecer, de forma paradigmática, que os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro das concessões federais são limitados ao prazo prescricional quinquenal, estabelecido no art. 1º do Decreto Federal nº 20.910/1932, a contar da data do ato ou do fato do qual se origina a pretensão violada.
No caso, foi discutida a viabilidade de a Agência Nacional de Aviação Civil (“ANAC”) conceder à concessionária do Aeroporto de Viracopos e à concessionária do Aeroporto do Galeão, os pagamentos devidos a título de reequilíbrio econômico-financeiro de seus Contratos de Concessão, assinados, respectivamente, em 2012 e 2014, em razão da ausência de reajuste na tarifa mínima de armazenagem e capatazia desde o início da execução de seus serviços. De acordo com o explicado pelas partes, o reajuste não foi realizado por todo esse tempo porque a cláusula contratual não era expressa nesse sentido. Argumentam que as concessionárias só tiveram ciência dos impactos após a publicação de portaria pela ANAC, disciplinando como o reajuste ocorreria a partir de então. Por isso, os pedidos de reequilíbrio foram protocolados apenas após esse ato.
A ANAC reconheceu a omissão em relação ao reajuste das tarifas e procedeu ao reequilíbrio econômico-financeiro dos Contratos. Mas, como as tarifas nunca haviam sido reajustadas, houve o transcurso de mais de cinco anos da data do primeiro reajuste devido até a formulação dos pedidos de reequilíbrio pelas concessionárias – o que contrariaria o supracitado Decreto Federal e o art. 3º da Resolução-ANAC nº 528/2019. Assim, a fim de conferir segurança jurídica às concessionárias, a ANAC entendeu que, nesses casos, o marco inicial da prescrição quinquenal deveria se dar a partir da ciência das concessionárias da aplicação da cláusula de reajuste, que ocorreu apenas recentemente, após a definição da metodologia em portaria. A Agência optou por aplicar, portanto, a chamada teoria da actio nata subjetiva.
Contudo, o Órgão Técnico do TCU, em sua instrução, entendeu que não seria cabível à ANAC optar pela aplicação da teoria actio nata subjetiva, pois, com isso, estar-se-ia desrespeitando o prazo quinquenal estabelecido pelo instrumento normativo da ANAC e pelo Decreto Federal nº 20.910/1932. Seguindo o relatório do Órgão Técnico, o Ministro Relator Antônio Anastasia entendeu, em suma, que “(…) com base apenas no material que foi juntado aos autos do TCU, não há como se afirmar cabalmente de que tenha decorrido de flagrante prejuízo suportado pela concessionária, por culpa do poder concedente (…)” e “(…) que admitir a aplicação da teoria da actio nata subjetiva ao presente caso, significaria sujeitar a Administração a riscos desproporcionais, o que não contribuiria para a segurança jurídica do setor de aviação civil”.
Por essas justificativas, foi determinado que a ANAC reavaliasse as decisões que concederam o reequilíbrio às concessionárias, e que ela se abstivesse de aplicar a teoria actio nata subjetiva às situações regidas por contratos administrativos de concessão. Até o momento, não houve o protocolo de recurso pelas partes envolvidas.
Sem qualquer juízo de mérito acerca das atribuições do TCU para expedir determinações em relação às atividades de cunho hermenêutico desempenhadas pelas agências reguladoras, em especial à forma de contagem de prescrição ou decadência de pleitos de reequilíbrio, é importante esclarecer, desde logo, que a decisão se restringe às concessões federais, de modo que não há que se falar de aplicabilidade do entendimento para as concessões subnacionais.
Além disso, outras ponderações são dignas de registro. Primeiro, vê-se que a decisão do TCU vai de encontro ao quanto deliberado por uma agência reguladora federal, dentro de sua competência técnica e discricionária – o que foi, inclusive, suscitado pela concessionária do Galeão nos autos do processo. Porém, o Órgão Técnico refutou o argumento por entender que cabe ao TCU determinar “(…) a adoção de medidas corretivas a ato praticado na esfera discricionária dessas entidades, quando houver violação ao ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da finalidade, da economicidade e da modicidade tarifária na prestação dos serviços públicos”.
Ocorre que, nesse caso, a própria ANAC reconheceu a sua própria omissão em relação à ausência de reajuste das tarifas mínimas de armazenagem e capatazia, e defendeu que, em prol da segurança jurídica, seria necessário realizar pagamento às concessionárias considerando a adoção da teoria actio nata. Desconsiderando toda a avaliação técnica da ANAC, o Ministro Relator se limitou a afirmar que os prejuízos às concessionárias não haviam sido demonstrados e que a não aplicação do prazo prescricional quinquenal poderia prejudicar a segurança jurídica no setor de aviação civil.
Além disso, a decisão parece não levar em consideração a existência de eventos de desequilíbrio cujos efeitos só poderão ser dimensionados após o decurso de prazo considerável; é dizer, existem eventos que provocam efeitos contínuos sobre o fluxo de caixa, não sendo passíveis de mensuração imediata (caso de vícios ocultos, por exemplo). Há, por outro lado, obrigações de trato sucessivo, cujo inadimplemento configura evento de desequilíbrio que se renova periodicamente. Essa discussão é relevante, e permite discutir o momento mais adequado para a aplicação da regra da prescrição quinquenal e da própria teoria da actio nata.
Por fim, o entendimento do TCU aparenta confundir os conceitos de prescrição e decadência. Isso porque, ao determinar a “revisão” da decisão que reconheceu o direito ao reequilíbrio às concessionárias, a Corte de Contas provoca, em termos práticos, a anulação do direito subjetivo ao reequilíbrio e não da pretensão judicial, direito atrelado ao instituto da prescrição.
Ainda que referido entendimento seja isolado, não se ignora os efeitos práticos que a decisão poderá provocar frente a outras Cortes de Contas do país. Nesse sentido, a prudência será imprescindível no monitoramento dos eventos de desequilíbrio, sendo recomendável não apenas o acompanhamento de eventos já materializados, mas sobretudo da devida formalização de registro em âmbito administrativo, preservando, assim, o direito de ação das concessionárias.
Caio Cesar Figueiroa – caio@cordeirolima.com.br
Victoria Andreucci P. G. Gil – victoria.andreucci@cordeirolima.com.br